quarta-feira, 11 de abril de 2007

Presente perfeito


Se há coisa que admiro e agradeço na educação que os meus pais nos deram foi o gosto pela leitura, pela música e pela arte, desde cedo alimentado por ambos os progenitores, cada um à sua maneira.

O meu pai revelava uma paciência, que hoje reconheço de Job, a admirar os nossos desenhos infantis, a ensinar-nos a paleta de cores infindas de que o mundo é feito, as formas, os espaços. Levava-nos a tudo o que era exposições e um dia passado na Gulbenkian fazia parte do nosso ritual familiar nas férias de qualquer Verão. Assim, eu e os meus irmãos, aprendemos a apreciar o belo e dizer "gosto" ou "não gosto", porque...

Aprendemos também a respeitar e admirar a autoria de cada obra. Exemplo disso, foi o dia em que me recordo de me ter virado para o meu pai, perante um quadro geométrico cujo autor desconheço (que a memória tem destas coisas, retém aquilo que nos toca no momento) que consistia numa cruz preta sobre um fundo preto, cujas tonalidades de negro eram quase imperceptíveis, e lhe ter dito: "Ora, isto eu também era capaz de fazer!", a que ele me respondeu: "Pois, mas não o fizeste. Nunca te esqueças que quem teve a ideia de o fazer foi ele".

O repeito pelos direitos de autor incutido num ápice.

A minha mãe, à noite, na hora de ir dormir, em vez das histórias da carochinha, lia-nos poesia escolhida meticulosamente. O poema do Gedeão do Rei que tinha fortunas, jóias e castelos mas que era infeliz por não ter um fecho écclair era dos que eu mais gostava.

E, assim, o gosto pela poesia, pela leitura foi, devagarinho, sendo alimentado.

Crescemos os três filhotes. Cada um à sua maneira, cada um com seu feitio, cada um com seu percurso de vida, mas todos nós, estou certa, guardamos estas dádivas que quem nos pôs no mundo nos soube entregar.

Hoje, por um acaso, cruzei-me com um poema do Cesariny.

Ele aqui fica porque a beleza que transporta, cuja consciência devo em pleno aos meus progenitores, o merece.

abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny

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